Vamos fazer uma viagem do EU ao Nós, por meio do texto Mas olhe para... de Clarice Lispector declamado pelo Antonio Abujamra.
Mas olhe para todos ao seu redor
e veja o que temos feito de nós
e a isso considerado vitória de cada dia.
Não temos amado,
acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não se entende
porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas
e seguranças
por não nos termos
um ao outro.
Não temos nenhuma alegria
que já não tenha sido catalogada.
Temos construído catedrais,
e ficando do lado de fora
pois as catedrais que nós mesmos construímos,
tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue
a nós mesmos,
pois isso seria o começo de uma vida larga
e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos
diante do primeiro de nós
que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações
e clubes sorridentes
onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar
mas sem usar a palavra salvação
para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor
para não termos de reconhecer
sua contextura de ódio,
de amor,
de ciúme
e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo
a nossa morte
para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte
por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor
a nossa indiferença,
sabendo que nossa indiferença
é angústia disfarçada.
Temos disfarçado
com o pequeno medo
o grande medo maior
e por isso nunca
falamos no que realmente importa.
Falar no que realmente importa
é considerado uma gafe.
Não temos adorado
por termos a sensata mesquinhez
de nos lembrarmos
a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros
e ingênuos
para não rirmos de nós mesmos
e para que no fim do dia
possamos dizer
“pelo menos não fui tolo”
e assim não ficarmos perplexos
antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público
do que não sorriríamos
quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza
a nossa candura.
Temo-nos temido
um ao outro,
acima de tudo.
E a tudo isso
consideramos
a vitória nossa de cada dia